quarta-feira, 17 de junho de 2015

DISNEY: Família e poder no Universo do Tio Walt.



O mundo de Disney é um orfanato do século XIX. Não há fuga, entretanto: os órfãos não têm para onde fugir. Apesar de seus inumeráveis deslocamentos geográficos, viagens a todos os continentes, febril mobilidade enlouquecida, os personagens contêm-se invariavelmente - voltam sempre - nas mesmas estruturas de poder. A elasticidade do espaço físico encobre a realidade carcerária das relações entre os membros. Ser mais velho ou mais rico ou mais belo neste mundo dá imediatamente o direito de mandar nos menos “afortunados”. 


Estes aceitam como natural esta sujeição; passam o dia todo a queixar-se acerca de tudo e da sua própria escravização. São incapazes, porém, de desobedecer ordens, por mais insanas que sejam. Este orfanato, no entanto, também se liga com a gênese dos personagens: como não nasceram, não podem crescer. 


Ou seja, nunca sairão tampouco desta instituição pela via da evolução biológica pessoal. Pode-se desta maneira aumentar o mundo em definitivo, agregando personagens à vontade e ainda suprimindo-os quando necessário: cada ser que chega, seja um solitário ou um par de primos longínquos, não necessita ser inseminado por alguém dentro do mundo. Basta que o roteirista pense, invente. 


A estrutura tio-sobrinhos permite que o autor da revista, que está fora dela, sugira que é sua mente que arma tudo, que a cabeça é a única fonte de criatividade (tal como saem genialidades e ampulhetas de cada cérebro patudo). Rechaça os corpos como surtidores de existência. 


É um mundo hierárquico, mas que não pode aflorar como tal. O momento em que se extrapola este sistema de autoridade implícito, isto é, no momento que se faz explícita, visível, manifesta a ordem arbitrária fundada unicamente na vontade de uns e na passividade de outros, faz-se peremptório rebelar-se. Não importa que haja um rei, enquanto este governe escondendo o ferro sob um disfarce de seda. Quando mostra o metal, porém, é obrigatória sua derrubada. Não se deve exagerar seu poder além de certos limites tacitamente estabelecidos, para que a ordem funcione; porque, ao extremar-se, muitas vezes se evidencia a situação como caprichosa. 


Destruiu-se o equilíbrio e é preciso restituí-lo. Aqueles que empreendem inevitavelmente esta tarefa são os meninos ou os animaizinhos, não para colocar no lugar do tirano o jardim da espontaneidade, não para levar a imaginação ao poder, senão para reproduzir o mesmo mundo da racionalidade do domínio do adulto. Quando o adulto não se comporta de acordo com o modelo, a criança toma seu cetro. 


Ainda que seja eficaz o método, este não é posto em dúvida. Basta que falhe, entretanto, para que a criança se rebele, exigindo a restauração dos mesmos valores traídos, reclamando a estabilidade das relações dominador-dominado. Os jovens aspiram, com sua prudente rebelião, com sua madura crítica, ao mesmo sistema de referências e valores. Não há novamente discrepâncias entre pais e filhos: o futuro é igual ao presente, o presente é igual ao passado. 


Não se pode esquecer que a criança se identifica com seu semelhante dentro da revista, e para tanto participa em sua própria colonização. A rebeldia dos pequenos dentro do conto é sentida como uma rebeldia própria, autêntica, contra a injustiça; porém, ao rebelar-se em nome dos valores adultos, os leitores também interiorizam e acedem a esses valores. 


Há vários episódios, inclusive, em que até o habilidoso Mickey é criticado por seus sobrinhos. Assim, a única mudança e passagem possível de uma condição a outra, de um status a outro, é que o representante dos adultos (dominante) pode ser transformado no representante das crianças (dominado), em vista de que muitas das torpezas que comete são justamente aquelas que critica nas crianças, que descompõem a ordem dos adultos. Assim mesmo a mudança permitida à criança (dominado) é converter-se em adulto (dominante). Havendo criado o mito da perfeição infantil, o adulto transfere suas próprias “virtudes” e “conhecimentos” a esta criança tão perfeita. No fundo, porém, admira a si mesmo.


Há, não obstante, um personagem que nunca sofre uma crítica nem é substituído pelos seres menores: trata-se da mulher. E isto apesar de existir a mesma linha genealógica que no ramo masculino. Tampouco isto significa que ela se evada da relação dominante-dominado. Não a impugna precisamente porque, ao contrário, leva a termo com perfeição sua tarefa de humilde servidora (subordinada ao homem) e de rainha de beleza sempre cortejada (subordinada ao pretendente). O único poder que se lhe permite é a tradicional sedução, que não se dá senão sob a forma de casamenteira. Não pode chegar mais longe, porque então abandonaria seu papel doméstico e passivo. Há mulheres que infringem este código da feminilidade: mas se caracterizam por estar aliadas com as potências obscuras e maléficas.


Concede-se à mulher, unicamente, duas alternativas: ser Branca de Neve ou ser a Bruxa, a donzela dona de casa ou a madrasta perversa. É preciso escolher entre dois tipos de panela: a caçarola do lar ou a poção mágica horrenda. E sempre cozinham para o homem, sua finalidade última é amarrá-lo de uma ou outra maneira. Se não é bruxa, não se preocupe, mãe; sempre poderá ocupar-se em profissões adstritas à sua “natureza feminina”: modista, secretária, decoradora de interiores, enfermeira, arranjos florais, vendedora de perfumes, criada. E se não é afeita ao trabalho, sempre pode ser a presidenta do clube de beneficência local. Resta-lhe, de todas as maneiras, o eterno namoro.


A Disney tem trabalhado para conseguir de novo esta deformação de um setor da realidade, neste caso o feminino, sobre o “fundo natural” da mulher, seu “ser essencial”, aproveitando somente aqueles rasgos que acentuam epidermicamente sua condição de objeto sexual inútil, ansiado e nunca possuído; esquecendo, entre outras coisas, tanto a função maternal como a de companheira solidária. Nem se fala da mulher emancipada intelectual e sexualmente: o sexo está, porém, sem sua razão de ser, sem o prazer, sem o amor, sem a perpetuação da espécie, sem comunicação. 


Mas por que esta obsessão e fobia feminina e materna de Disney? Por que se expulsou a mãe do seu paraíso? O que importa, por enquanto, é simplesmente insistir que sua ausência, seu papel secundário, sua amputação, possibilita a rotatividade de tios e sobrinhos, de grandes e pequenos, substituindo-se eternamente em torno dos mesmos ideais. Não havendo uma mãe que se interponha, não há problemas para mostrar o mundo dos adultos como perverso e torpe, e preparar assim sua substituição pelos pequenos, que levantam os valores adultos. 


Todas as intenções de Disney baseiam-se na necessidade de que seu mundo seja aceito como natural, isto é, que combine os rasgos de normalidade, regularidade e infantilismo. A justificação das figuras da mulher e da criança é, com efeito, a de que assim são objetivamente estes personagens, ainda que, segundo vimos, tenha torturado implacavelmente a natureza de cada ser do qual se acerca. 


Desagregação familiar, deturpação moral, apologia ao poder irrestrito, demagogia explícita. Nisso se resume o teor da obra do "Tio Walt", ficando apenas na esfera psicológica e moral, sem enquadrar a questão sexual, disfarçada muitas vezes de pareidolia acidental.

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