quarta-feira, 17 de junho de 2015

DISNEY: Animais com características humanas.



O fato é que o mundo de Disney está povoado de animais. Através disso a natureza invade tudo, coloniza o conjunto das relações sociais animalizando-as e pintando-as (manchando-as) de inocência. A criança tende, de fato, a identificar-se com a brincalhona bestialidade dos animais. A medida que o menino cresce vai compreendendo que as características do animal (maduro) correspondem a alguns de seus próprios rasgos evolutivos psicossomáticos. 

Ele tem sido, de certa forma, como esse animal, vivendo sobre quatro patas, sem fala etc. Assim, o animal é o único ser vivente do universo que é inferior ao menino, já superado por este, e que é o seu boneco animado. Constitui ainda um dos pontos onde a imaginação infantil pode desenvolver-se com maior liberdade criativa; já não é segredo para ninguém que muitos filmes que utilizaram animais têm alto valor pedagógico, educando sensibilidade e sentidos.

O uso que Disney faz dos animais é, todavia, para prender os meninos e não para liberá-los. Eles são convidados a um mundo no qual eles pensam que terão liberdade de movimento e criação, no qual eles ingressam confiantes e seguros, respaldados por seres tão carinhosos e irresponsáveis como eles mesmos e dos quais não se pode esperar nenhuma traição, com os quais eles poderão jogar e confundir-se. 

Depois, uma vez dentro das páginas da revista, não se dão conta quando, ao fechar as portas atrás deles, os animais se convertem, sem perder sua forma física, sem tirar a máscara simpática e risonha, sem perder seu corpo zoológico, em monstruosos seres humanos. A linguagem desse tipo de historinha infantil não seria senão uma forma da manipulação. O uso dos animais não é bom nem mau em si. É o tipo de ser humano que encarnam o que se deve determinar em cada caso.

A obsessão de Disney pela natureza, sua nostalgia em seguir eximindo um mundo que ele sente profundamente perverso e culpado leva-o a exagerar esta tendência ainda mais, como se não bastasse expulsar a verdadeira natureza dos animais e usar somente seu corpo impostor (tal como o fez com as crianças e mulheres). Todos os personagens anseiam pelo retorno à natureza. 

Alguns vivem no campo ou nos bosques (Vovó Donalda, pequenos esquilos, lobinhos etc), mas a maioria pertence à vida urbana, e dali saem em viagens incessantes até as ilhas, os desertos, o mar, bosques, céus, estratosfera, montanhas, lagos, em todos os continentes (Ásia, América, África, Oceania e muito de vez em quando algum setor não-urbanizado da Europa). E certo que uma boa proporção de historietas transcorre na cidade ou em habitações fechadas: estas, porém, enfatizam o caráter catastrófico e absurdo da vida urbana. 

Há contos dedicados à poluição, ao congestionamento de trânsito, aos ruídos intempestivos, à dificuldade de vida social (muitas vezes as lutas entre vizinhos chegam a lances muito cômicos), à onipresença da burocracia e dos agentes da polícia. A urbe está, na realidade, concebida como um inferno, onde especificamente o homem perde o controle de sua própria situação. O personagem se enreda nos objetos, episódio após outro.

O cidadão poderá chegar ao campo, sempre que abandone antes toda a maldição técnica: naufragam os barcos, caem os aviões, roubam-lhe o foguete. É preciso passar pelo purgatório antes do paraíso: e se chega com um objeto contemporâneo, este só causará problemas, complicará vingativamente o homem que quer se descontaminar. 

Poderíamos parar no umbral de uma primeira explicação superficial: trata-se de um mero escapismo, a válvula de segurança corrente em toda a cultura de massas, que exige um pouco de repouso e ilusão, imprescindíveis para a saúde mental e física. É o passeio dominical no parque e o período anual de férias! Como a criança vive num feriado perpétuo, não deveria estranhar que os personagens que lhe são impostos também busquem a paz campestre. 

Esta tese tenderia a ser exaustiva se esses lugares, aos quais se aventuram nossos heróis, estivessem abandonados e desabitados, caso em que a relação seria entre o homem e a matéria inorgânica, a natureza pura incontaminada. Não havendo nativos, impossibilitar-se-ia qualquer relação humana diferente da que já analisamos no post anterior. Mas não é o caso. 

Nesses mundos, longe da metrópole Patolândia, pistas de casual aterrissagem das aventuras de nossos heróis, ávidos de tesouros e desejosos de romper seu aborrecimento cotidiano com um sadio e puro entretenimento, esperam habitantes de características pouco comuns: 

1. IDENTIDADE. Primitivos. Duas espécies: uma puramente bárbara (idade da pedra), geralmente África, Polinésia, alguns rincões perdidos do Brasil, Equador ou EUA; a outra muito mais evoluída mas em vias de extinção senão de degeneração, e que algumas vezes cobriu uma civilização antiga com muitos monumentos e comidas específicas. Nenhuma das duas espécies incursionou, entretanto, na era tecnológica.

2. RESIDÊNCIA. O primeiro grupo não tem cidades. Às vezes consegue levantar cabanas. O segundo tem cidades, em ruínas ou inservíveis. Sugere-se levar câmara fotográfica, porque tudo, absolutamente tudo, é folclórico e exótico. 

3. RAÇA. Todas menos a branca. Existem todos os tons: desde o negro mais retinto até o amarelo, passando pelo café-com-leite, o ocre e um certo leve matiz de alaranjado para os peles-vermelhas. 

4. MEDIDA. Deve levar uma escada ou um microscópio. Geralmente são enormes, gigantescos, brutos, maciços, pura matéria-prima, puro músculo. Em troca, encontram-se de vez em quando pigmeus. Não pise neles, por favor, são inofensivos. 

5. VESTIMENTA. Em cueiros, a menos que se vistam como seu mais distante antepassado de sangue real. Nosso amigo Disney, que falava do “Deserto Vivo”, sem dúvida teria utilizado aqui a frase feliz: Museu Vivo.

6. QUALIDADES MORAIS. São como as crianças. Afáveis, despreocupadas, ingênuas, alegres, confiantes, felizes. Têm ataques de raiva quando são contrariados. É muito fácil, porém, aplacá-los e até mesmo enganá-los. O turista cauteloso levará algumas quinquilharias e seguramente poderá trazer mais de uma joia nativa. Extraordinariamente receptivos: aceitam qualquer dádiva, sejam artefatos trazidos da civilização, seja dinheiro; ou, em último caso, recebem seus próprios tesouros, sempre que sob a forma de presente. São desinteressados e ainda generosos. Os missionários, que estão enfastiados dos delinquentes juvenis, poderiam divertir-se com estes cristãos primitivos nunca evangelizados; e não obstante são capazes de entregar tudo. TUDO, TUDO. Assim, são uma fonte permanente de riquezas e tesouros, que para eles de nada servem. São supersticiosos e imaginativos. Acima de tudo, poderíamos qualificá-los, sem apregoarmos erudição, como o típico selvagem bonzinho de que falam Cristóvão Colombo, Jean-Jacques Rousseau, Marco Polo, Richard Nixon, William Shakespeare e a Rainha Vitória. 

7. ENTRETENIMENTO. Estes primitivos cantam, dançam e às vezes, para se divertirem, fazem revoluções. Tendem a utilizar como brinquedo qualquer artefato que você leve (telefone, perucas, canhões). 

8. IDIOMA. Não necessitam de intérprete ou dicionário bilíngue. Quase todos falam patolandês fluentemente. Não se preocupe, entretanto, se você tem um filhinho; pode entender-se com os outros sem dificuldade, pois falam a mesma linguagem que as crianças de tenra idade, com preferência pelas guturais. 

9. BASE ECONÔMICA. Economia de subsistência. Pastoreiro, pesca, coleta de frutas; às vezes, vendedores. Fabricam objetos turísticos numa ou noutra ocasião: não os compre; poderá conseguir os mesmos e mais, grátis, mediante algum truque. Demonstram um extraordinário apego à terra, o que os torna ainda mais naturais. Há abundância. Não necessitam produzir. São consumidores-modelo. Talvez sua felicidade se deva a não trabalharem. 

10. ESTRUTURA POLÍTICA. O turista vai se sentir muito à vontade, já que os paleolíticos vivem numa democracia natural. Todos são iguais, menos o rei, que é mais igual que os demais. Isto significa que são desnecessárias as liberdades cívicas e os direitos humanos: o poder executivo, legislativo e judiciário se entrecruzam. Tampouco é necessário votar ou expressar-se por meio da imprensa. Compartilham tudo, como num clube Disneylândia, se se nos permite a comparação: e na realidade, o rei não tem autoridade nem direitos, exceto seu título, tal como um general de um clube Disneylândia. É o que os diferencia do segundo grupo, das culturas antigas degeneradas, onde o rei tem poder ilimitado, mas também deve viver em constante expectativa de deposição. Não obstante, os nativos padecem de uma afeição um tanto curiosa: sempre desejam restaurar seu rei. 

11. RELIGIÃO. Não têm, porque habitam um paraíso perdido, um verdadeiro jardim do Éden antes da expulsão de Adão. 

12. ANIMAL NACIONAL. A ovelha, sempre que não seja desgarrada ou negra. 

13. VIRTUDES MÁGICAS. Este ponto é talvez o mais importante e o mais difícil de explicar para quem não sofreu a gloriosa experiência, mas é a base do selvagem bonzinho, e a razão pela qual é tão assiduamente frequentado. Explica-se também por que sempre se preferiu deixá-los num estado relativamente atrasado e sem as contradições da sociedade contemporânea. Estando em tão estreita comunhão com a natureza física, esta lhes empresta suas qualidades morais, sua bondade, e os selvagens se convertem em essência ética que irradia pureza. Sem o saber, constituem uma fonte de permanente santidade, sempre renovável e renovada. Tal como existem reservas de índios e de florestas, não devemos estranhar que haja também reservas de moralidade e de inocência. Sem alterar o mundo tecnológico, eles conseguiram, por quem sabe quais recônditos caminhos, salvar a humanidade. São a redenção. 

Certamente se objetará que esses truques obedecem à fantasia, mas é uma pena que estas leis da imaginação favoreçam unilateralmente os personagens que vêm de fora e os que escrevem e editam estas revistas. Por que, porém, nunca chama a atenção este flagrante despojamento, ou em outros termos, como é possível que esta desigualdade apareça como uma igualdade? 

Isto é, por que o saque imperialista, para chamá-lo por seu nome, e por que a submissão colonial não aparecem como tais? “Jóias temos, mas de nada servem.” Aí estão em suas tendas de deserto, em suas cavernas, em suas cidades outrora florescentes, em suas ilhas isoladas, em suas fortalezas proibidas, e nunca poderão sair dali. Tolhidos em seu tempo histórico pretérito, definidas suas necessidades em função deste passado, estes subdesenvolvidos não têm direito de construir um futuro. Suas coroas, suas matérias-primas, seu petróleo, sua energia, seus elefantes de jade, suas frutas, mas especialmente seu ouro, jamais poderão ser utilizados. 

O progresso, que vem de fora com seus múltiplos objetos, é para tanto um brinquedo. Nunca romperá a defesa cristalizada do selvagem-bonzinho, ao qual se proíbe civilizar-se. Nunca poderá entrar no clube dos atores da produção, porque nem sequer entende que esses objetos foram produzidos. São vistos como elementos mágicos, surgidos do cérebro dos estrangeiros, de seu verbo, de suas palavras mágicas. 

Não havendo outorgado aos bons selvagens o privilégio do futuro e do crescimento, todo o saque não aparece como tal, já que extirpa o que é supérfluo, prescindível, ninharia. O despojo capitalista irrefreável se encena com sorrisos e sedução. Pobres nativos. Como são ingênuos. Se eles não usam seu ouro, entretanto, o melhor é levá-lo. Servirá para alguma coisa em outra parte.

Assim, Disney faz uso dos animais para estereotipar os povos considerados colonizados, se não de fato, ao menos pela doutrina sistemática da educação do "Tio Walt". Assim nos ilude, qualificando o personagem "fictício", mas permitindo um distanciamento por usar um animal como figura portadora das características humanas. Mas a mensagem é repassada de qualquer forma, havendo sentimentos de culpa, ou não...

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