quinta-feira, 18 de junho de 2015

APÓCRIFOS: Manuscritos de Nag Hammadi.

Os séculos XIX e XX presenciaram uma série de descobertas arqueológicas importantíssimas para o estudo das religiões da antiguidade, sobretudo o judaísmo, o cristianismo e outras crenças ligadas direta ou indiretamente a estas, como o gnosticismo e o maniqueísmo, por exemplo. E ainda, desde a segunda metade do século XIX, o volume de edições, publicações e traduções de fontes antigas relativas aos estudos de religião aumentou consideravelmente. Não resta dúvida de que o estudo histórico destas religiões antigas deve necessariamente se apoiar em fontes primárias. Pôde-se presenciar, portanto, um grande aumento no interesse pelo estudo do cristianismo primitivo, do judaísmo antigo e ainda de correntes religiosas ditas herméticas, caso, por exemplo, dos já citados maniqueísmo e gnosticismo. 

Até então, o número de fontes relativas às manifestações religiosas da antiguidade tidas como marginais era consideravelmente baixo. Com exceção de fragmentos de textos conservados em citações da literatura patrística, ou alguns poucos documentos conservados pela tradição das igrejas cristãs, dispunha-se de quase nada para o estudo destas manifestações religiosas. Foram muito poucos os documentos que sobreviveram ao tempo e ao processo de canonização e exclusão progressiva de textos por parte das igrejas cristãs a partir dos séculos IV e V. 

O século IV em particular possui um papel importante no contexto de transmissão dos textos cristãos primitivos. Em 303, começa a grande perseguição de Diocleciano contra os cristãos e outras correntes religiosas minoritárias dentro do império. Esta perseguição, além dos tradicionais martírios, fez ainda com que locais de culto fossem aniquilados, funcionários imperiais cristãos fossem demitidos de seus cargos, Bispos fossem aprisionados e textos religiosos incinerados e destruídos. Portanto, muitos textos cristãos se perderam para sempre nesta perseguição de Diocleciano no século IV. 

Inversa e surpreendentemente, em 314, o imperador Constantino torna o cristianismo lícito, com o edito de Milão. Anos mais tarde, em 379, o cristianismo do concílio de Nicéia é declarado a única forma correta de cristianismo, e em 391, ele é proclamado religião oficial do império. A partir de então, as outras formas de cristianismo são proibidas e acabam desaparecendo gradualmente, levando consigo os poucos textos restantes das perseguições de anos atrás. Juntamente a isso, há ainda a própria ação natural deteriorante, fruto dos séculos de existência destes textos. 

Portanto, os achados dos séculos XIX e XX constituem uma contribuição excepcional para o estudo das manifestações religiosas marginais da antiguidade. Neste sentido, é possível destacar algumas destas descobertas arqueológicas de fontes primárias que impulsionaram a intensificação destes estudos. A primeira delas é sem dúvida a descoberta dos papiros de Oxiríncos, feita por dois arqueólogos britânicos, Grenfell e Hunt, no final do século XIX, na região central do Egito, próximo à margem leste do Nilo. Esta descoberta trouxe ao conhecimento dos estudiosos textos gregos de várias naturezas, dentre eles alguns textos cristãos. 

Outra importante descoberta aconteceu na Palestina, nas proximidades do Mar Morto, no ano de 1948. Tratava-se de milhares de fragmentos de textos aramaicos e hebraicos. Entre os escritos descobertos havia textos bíblicos e também textos sectários que revelam certa diversidade no judaísmo antigo. Os textos de Qumram ficaram conhecidos pelo nome de Manuscritos do Mar Morto e propiciaram uma grande quantidade de fontes para o estudo do judaísmo antigo e ainda para o entendimento de textos cristãos com motivações e background judaicos, como o Apocalipse, por exemplo. 
Alguns anos antes da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, uma outra descoberta aconteceu no sul do Egito, próximo cidade moderna de Nag Hammadi. O ano era 1945, e o mundo estava interessado nos momentos finais da Segunda Grande Guerra e em suas consequências, não dando muita importância imediata à descoberta. 

No entanto, nos anos decorrentes os especialistas começaram a tomar contato com os textos, apesar da relativa demora na publicação. Esta coleção de textos ficou conhecida como biblioteca copta de Nag Hammadi, e é o assunto específico deste post. 
Antes, porém, pode-se ainda destacar a aquisição de um novo codex com textos coptas pela fundação Mecenas. Esta aquisição foi anunciada na ocasião da oitava reunião de estudos coptas, em Paris, em julho de 2004, pelo professor Rodolphe Kasser. Este codex, chamado em princípio de Codex Mecenas, recebeu o nome de Codex Tchacos.

Em dezembro de 1945, dois camponeses egípcios entraram em uma caverna, próxima à cidade moderna de Nag Hammadi, margem leste do Nilo, alto Egito, à procura de fertilizante. Eles encontraram um jarro de argila de aproximadamente sessenta centímetros de altura por trinta de largura. Dentro do vaso havia diversos códices de papiros com coberturas de couro. Aos olhos dos camponeses, os códices pareciam ser antigos e possuíam caracteres escritos desconhecidos por seus descobridores. 

O que se segue é uma história de assassinatos e vinganças digna de um enredo de filme de mistério e ação, que envolveu o pai dos camponeses descobridores. Os irmãos descobridores estavam envolvidos em rixas com outras famílias, e seu pai foi assassinado devido a uma destas contendas. 

Os manuscritos parecem ter ficado guardados na casa dos descobridores durante semanas, talvez até meses, sem que se percebesse seu valor histórico. Existe inclusive, a possibilidade de que durante este tempo, algumas páginas, sobretudo do codex XIII, tenham sido utilizadas para acender o fogo no fogão à lenha da mãe dos camponeses descobridores. 

Com medo de ser descoberto pela polícia, que investigava assassinatos por vingança na região, Mohamed Ali, um dos irmãos camponeses, entregou os códices a um sacerdote copta, Baslio Abd al-Masih. Baslio então, os mostrou ao seu irmão, Raghid Andrawus, professor de história nas paróquias coptas da região. Raghid reconheceu que os manuscritos poderiam ter certo valor e levou um dos códices à cidade do Cairo. 

No Cairo, o codex foi visto pelo médico G. Sobhi, que percebeu que o manuscrito possuía valor histórico e avisou ao departamento de antiguidades do governo egípcio. Nesta época, o diretor do departamento era o francês E. Drioton, que comprou o codex de Raghid por uma quantia relativamente modesta. No mês de outubro de 1946, quase um ano após a descoberta, o codex em questão chegou às mãos de Togo Mina, diretor do Museu Copta do Cairo. 
No ano seguinte, um jovem estudioso francês, J. Doresse, que estava no Egito para estudar os monastérios coptas na antiguidade tardia, teve contato com os textos do codex que estavam sob a guarda de Togo Mina no Museu Copta do Cairo. 

E então, pela primeira vez, alguém finalmente percebeu a real importância dos textos. Doresse percebeu que se tratava de textos cristãos antigos, desconhecidos até o momento. A língua em que os textos estavam escritos era o copta, a língua do Egito na época romana. Ele pôde ver nos manuscritos títulos como O apócrifo de João e a Sabedoria de Jesus Cristo, por exemplo. Doresse e Mina fizeram projetos de publicação dos textos. Eles começaram uma busca por outros códices, mas como não conseguiram encontrar nenhum outro, acreditaram que o que possuam era o único. Então, eles noticiaram oficialmente a descoberta dos textos que possuíam em 1948.

Enquanto isso, mais ou menos na mesma época, o codex que posteriormente seria denominado como sendo o número 1 era adquirido pela fundação Jung, por intermédio de um antiquário belga, A. Eid. Este codex, após sua publicação, foi entregue ao museu copta do Cairo. 

Os outros códices foram sendo gradualmente adquiridos por outras pessoas ou antiquários. Até que em 1949, todos os códices foram expropriados pelo governo do Egito, e entregues ao museu copta do Cairo. Com a morte de Togo Mina, em outubro de 1949, os códices então, ficaram guardados em uma mala selada até 1956. O sucessor de Togo Mina, Pahor Labib, só tomou conhecimento dos manuscritos em 1952. 

Existem hoje em dia três edições críticas com tradução dos textos de Nag Hammadi. Uma delas realizada pelo mesmo grupo da Califórnia que publicou The Nag Hammadi Library in English e se chama The Coptic Gnostic Library, e foi lançada em cinco volumes, em uma coleção com o título de Nag Hammadi Studies. Esta edição contém os textos coptas editados, com aparato crítico e notas, bem como introduções gerais aos textos e s traduções. Esta edição é na verdade uma expansão da The Nag Hammadi Library in English, sendo as traduções as mesmas, com o adicional do texto copta, das notas e do aparato crítico, no entanto. 

As outras duas edições críticas dos textos de Nag Hammadi foram realizadas em Berlim e em Quebec, Canadá. A edição alemã foi publicada com o título de Berliner Arbeitskreiz fr Koptisch-gnostiche Schriften na coleção Texte und Untersuchungen zur Geschichte der altchristlichen Literatur. E a tradução integral dos textos de Nag Hammadi em alemão está disponível há pouco tempo, com o título de Nag Hammadi Deutsch. 

Como já mencionado, a descoberta dos textos de Nag Hammadi propiciou um grande número de textos inéditos. Segue um inventário completo dos textos encontrados em Nag Hammadi dispostos por ordem em que se encontram nos códices. 

Codex I: A oração do apóstolo Paulo; O apócrifo de Tiago; O evangelho da verdade; O tratado sobre a ressurreição; O tratado tripartido.

Codex II: O apócrifo de João (versão longa); O evangelho de Tomé; O evangelho de Felipe; A hipóstase dos arcontes; O escrito sem título; A exegese da alma; O livro de Tomé.

Codex III: O apócrifo de João (versão breve); O livro sagrado do Grande Esprito invisível; Eugnostos, o bem-aventurado; A sabedoria de Jesus Cristo; O diálogo do Salvador.

Codex IV: O apócrifo de João (versão longa); O livro sagrado do Grande Esprito invisível.

Codex V: Eugnostos, o bem-aventurado; O apocalipse de Paulo; O (primeiro) apocalipse de Tiago; O (segundo) apocalipse de Tiago; O apocalipse de Adão. 

Codex VI: Os atos de Pedro e dos doze apóstolos; O trovão, mente perfeita; O autêntico logos ; O conceito de nosso grande poder; A república de Platão (588A-589B); A Hebdômada e a Enêada; A oração de ação de graças; Alcelpius.

Codex VII: A paráfrase de Sem; O segundo tratado do grande Set; O apocalipse de Pedro; Os ensinamentos de Silvano; Os três marcos de Set.

Codex VIII: Zostrianos; A carta de Pedro a Felipe.

Codex IX: Melquisedeque; Nórea, O testemunho verdadeiro.

Codex X: Marsánes.

Codex XI: A interpretação da gnose; A exposição valentiniana; Allógenes; Hypsifrone. 

Codex XII: As sentenças de Sextus; O evangelho da verdade; fragmentos. 

Codex XIII: Protenoia trimórfica. 

Acredita-se atualmente que os textos de Nag Hammadi são traduções coptas de documentos originalmente compostos em grego. As datas das composições originais são, em geral, difíceis de serem precisadas, mas variam entre o século II e o século IV. Os locais de composição são igualmente difíceis de serem precisados. As cópias encontradas em Nag Hammadi, todavia, datam seguramente do século IV. Pôde-se chegar a esta conclusão pela análise dos papiros e das coberturas de couro dos códices.

Os textos de Nag Hammadi são fontes importantíssimas para o estudo do cristianismo primitivo. No entanto, é importante lembrar que são textos relativamente tardios, produzidos originalmente nos séculos II, III e IV. Assim, não se deve tentar utilizar tais textos como fontes históricas primárias para o estudo de acontecimentos históricos do século I. Muitos estudiosos americanos, por exemplo, buscaram nos textos de Nag Hammadi fontes para o estudo do Jesus histórico. No entanto, creio que estes textos de Nag Hammadi não são fontes confiáveis para este tipo de estudo, mas sim o reflexo de tradições tardias sobre a figura de Jesus e dos personagens que o cercaram. 

Nos últimos anos alguns textos de Nag Hammadi têm chamado atenção não só dos estudiosos, mas da população em geral, devido a reportagens de meios de comunicação de massa e ainda a obras de ficção.É o caso, por exemplo, de dois textos do codex II, O evangelho de Tomé e O evangelho de Felipe.

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