quarta-feira, 17 de junho de 2015

DISNEY: Fábrica de estereótipos.



Ao contrário do que se poderia supor a enunciação fílmica não prima somente pelo entretenimento, trazendo discussões de cunho político-ideológico presentes de modo direto e/ou velado. Por tratar-se de um objeto cultural, torna-se inalienável a presença de traços históricos em sua matéria simbólica, traços esses que corroboram para a educação moral não-formal das crianças, já que se volta para estereótipos que evidenciam comportamentos difundidos socialmente. 

Nesta perspectiva, o processo educativo não está restrito às instâncias tradicionalmente reconhecidas para este fim, como as escolas, as universidades, a Igreja e a família, mas estende-se a todas as formas de propagação da cultura, desde as práticas cotidianas de caráter doméstico até os mais variados atos públicos. Entre estes múltiplos lugares de aprendizagem, os meios de comunicação e a indústria do entretenimento ultimamente tem recebido bastante atenção pelos pesquisadores em educação, não apenas por fazerem parte efetiva do cotidiano de nosso tempo, mas também devido ao poder que exercem como formadores e propagadores de saberes. Os filmes Disney são um exemplo consagrado do que aparentemente ensina o que é correto, como agir bem e a postura necessária para enfrentarmos as adversidades. 

Na profusão de ditos e imagens que povoam nosso cotidiano, educamos e somos educados a determinados modos de pensar, agir e sentir, a possuirmos modos de ser que nos colocam em lugares reconhecidos e nos constituem como sujeitos portadores de uma identidade. Ditar o comportamento feminino é uma preocupação que persiste na história de nossa sociedade. Partindo desse pressuposto, analisamos os modos de subjetivação em relação à figura do feminino presente em seis enunciações fílmicas infantis. Assim procedendo, é possível estabelecer um paralelo entre os filmes dos estúdios Disney, de modo a verificar semelhanças e diferenças na caracterização da figura do feminino. 

De modo lúdico, os filmes infantis, além de entreterem, propagam valores morais, culturais e ideológicos, fazendo-os funcionar como uma espécie de instrumento de educação não-formal direcionado às crianças. Assim compreendendo a produção cinematográfica, as diferenças na caracterização da figura do feminino podem ser relacionadas a mudanças na sociedade, já que o processo discursivo se dá sob condições históricas, sociais e ideológicas específicas. Apesar disso, valores culturais da classe hegemônica e um mesmo “padrão de beleza”, que envolve magreza e delicadeza, continuam presentes em todos os filmes e são divulgados e legitimados por eles.

É difícil encontrar uma menina que nunca tenha brincado de princesa. Com seus longos vestidos, belos castelos e tiaras, elas fazem parte do imaginário infantil. Em um mundo onde as mulheres são constantemente expostas a imagens de um ideal de beleza a seguir, as princesas são o primeiro exemplo que meninas querem imitar – e logo de cara é um ideal impossível, com suas cinturas extremamente finas e cabelos sempre impecáveis. As princesas, especialmente dos filmes da Disney, foram analisadas e condenadas por diversos autores como péssimos exemplos, personagens que convencem meninas a acreditar que precisam ser lindas para que histórias aconteçam a elas, para que seu príncipe encantado chegue para resgatá-las. 

É certo que o "gênio" de Disney ao resgatar contos de fadas, alguns deles do século XVII (ou anteriores) recriados pelos irmãos Grimm (século XIX), reinventou o estereótipo da doce criatura púbere e angelical da princesa. O mundo ganhou em 1937 Branca de Neve como a primeira das três que inauguraria a série de ninfetas pré-adolescentes que encantariam pessoas do mundo inteiro por muitos e muitos anos. Mas o que então estaria por trás daqueles belos rostinhos encantadores das princesinhas e suas vidinhas que terminavam sempre no famoso ‘felizes para sempre?

Todas elas, mais ou menos na casa dos 14 anos, isto é entrando na adolescência, tinham relações parentais muito complicadas, que variavam da ausência da mãe à presença de madrastas terríveis, figuras paternas fracas ou inexistentes, submissão, sujeitas a maus tratos, passividade e uma virgindade incontestável cuja finalidade era descobrir o sexo com seu grande amor e pertencer somente a ele por toda vida, isto é, a um príncipe. Todas elas, por caminhos distintos, tinham essas finalidades: serem posse de um macho alfa (príncipe) e fim de papo. 

Eis aqui o arquétipo que se esperava de uma jovem prestes a se tornar mulher. Por trás de toda aquela pureza, as princesinhas representam as mulheres e a submissão delas, fadadas a serem apenas amantes, mães e donas de casa, obedientes aos seus senhores, devendo perpetuar o império do macho que sempre existiu no mundo até o final da primeira metade do século vinte. Walt Disney foi acusado de antissemitismo, sexismo etc., mas deixando isso de lado, pois não é o objetivo deste post, é claro que essas princesinhas são o protótipo da extrema submissão, recalques sexuais e conflitos parentais imensos que tinham na criação de seus desenhos maravilhosos um veículo de expressão de toda uma cultura machista que foi preponderante em nossa civilização.

Mas os tempos mudam, assim como os desejos conscientes da audiência. Afinal, nos anos 60 houve a revolução feminista e com o advento de métodos anticonceptivos eficazes a mulher ganha autonomia, se desenvolve como cidadã e conquista espaços até então exclusivos ao universo masculino. Passa a poder optar se queria ou não ser mãe e o casamento se justificaria segundo seu desejo, não mais pela obrigação. Começa a diferenciar o mundo do prazer do mundo da maternidade. Parceiros daí em diante só se fossem promotores de seus ideais em outras dimensões da vida, do contrário, eles não serviriam mais. Pronto, já não havia espaço às patéticas e graciosas princesinhas que tinham no marido-príncipe o único ideal de vida.

Curiosamente houve um hiato de trinta anos depois da última das três primeiras princesas, a Bela Adormecida (1959), sem que outras fossem criadas pelos estúdios Disney, até que em 1989 surge Ariel, a Pequena Sereia. Substancialmente diferente das anteriores, Ariel era briguenta, pirracenta, impulsiva, enfrentou e desobedeceu seu pai, se envolveu em lutas, foi presa por uma bruxa e bateu o pé até virar humana! 

Segue-se depois dela um rol de outras tantas que apesar de não abandonarem o ideal do amor, não tinham posturas conformistas ou submissas, mas libertárias, desejosas por conhecer o mundo e participar de batalhas. Não eram mais necessariamente louras caucasianas, mas mouras (Jasmine), peles vermelhas (Pocahontas), chinesas (Mulan), negras (Tiana)... Enfim, tudo de fato mudara no universo encantado, pois o mundo já não era o mesmo e não havia espaço para aquelas ninfetinhas com os seios se tornando protuberantes à espera de um falo para obedecerem para todo o sempre.

Os significados que a cultura atribui a estas imagens está relacionado a um lugar de origem histórica que mitificou-se na figura social ou fictícia chamada “princesa”. O tema de análise “princesa’ não refere-se apenas aos sujeitos do sexo feminino que ostentam este título aristocrático, mas sim à personagens e
personalidades que apresentam-se no imaginário cultural como figuras pertinentes a um conteúdo mítico específico. 

Distinguimos aqui, uma subjetividade intrincada nos discursos de nobreza, beleza e amor romântico, uma subjetividade que pode ser representada pela figura cultural reconhecida como "princesa”. Os sujeitos, principalmente meninas, moças e mulheres, a quem estes discursos são explicitamente dirigidos, regulam-se dentro de padrões que envolvem a idealidade de um prestígio social (nobreza), adequação à norma estética numa concepção dada de corpo e indumentária corretos (beleza) e principalmente através do mito de que a realização plena só é possível através do amor. Estes discursos permeiam um lugar marcadamente feminino, cuja figura da princesa congrega qualidades idealizadas dos aspectos que a cultura dominante atribui como significativos para a feminilidade. 

O conceito-chave para a análise das representações de minorias é o estereótipo. Seria uma forma necessária e inescapável de criar uma sensação de ordem em meio ao caos da vida social nas cidades modernas. Porém, essa interpretação inocentaria seus perpetradores, negligenciando o racismo, a xenofobia e a discriminação sexual inerentes aos estereótipos. Os estereótipos reduzem todas as características de um grupo a poucos atributos essenciais (traços de personalidade, indumentária, linguagem verbal e corporal, ambições, etc.) com a falsa justificativa de que esses seriam fixados pela Natureza. 

O conceito de feminilidade estaria atrelado à docilidade, submissão e, principalmente, à constante vontade de atingir um ideal impossível de beleza. Mesmo trabalhando e sendo bem sucedidas, as mulheres são imersas em conceitos de beleza que promovem o ódio a si mesma, obsessão com o físico e pânico de envelhecer, através da reprodução de milhões de imagens do que seria considerado ideal. Porém, as qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres são apenas símbolos do comportamento feminino que aquele período julga ser desejável.

Para a cultura masculina, as mulheres seriam uma ameaça, como “um monstro em escala muitíssimo maior do que as de outras minorias étnicas, porque as mulheres não são uma minoria, pelo contrário; somam mais de 52% da população mundial. As mulheres trabalham mais do que os homens para conseguir o mesmo salário e, ainda assim, a maior parte do trabalho doméstico continua sendo exercida por elas. Apesar de sobrecarregadas nesta “dupla jornada”, elas conseguiram conquistar “brechas no poder” e ser uma “ameaça ao status quo”. 

O mito da beleza surge então como uma “tripla jornada”. Ele legitima a aparência feminina como uma qualificação necessária para o sucesso, também se relacionando com o “sonho americano”, já que faz acreditar que, com esforço e dedicação, toda mulher pode atingir esse ideal. A ‘beleza’ passa a ser a condição para que a mulher dê o próximo passo. Elas agora estão ricas demais. No entanto, não podem estar magras o bastante. A beleza passa a atingir as mulheres onde a sexualidade se funde com o amor-próprio, e a cultura cria o estereotipo de que as mulheres podem possuir beleza sem inteligência ou inteligência sem beleza, mas nunca os dois ao mesmo tempo.

Os "clássicos" de animação dos estúdios Walt Disney encontraram uma fórmula infalível para alcançar o sucesso de público: combinam o encantamento da técnica com histórias cativantes. Não é à toa que são lembrados por crianças e adultos há mais de 70 anos. Embora muitos dos contos sejam protagonizados por princesas, especialmente os que deram origem a filmes populares voltados majoritariamente ao público feminino, os contos de fadas têm grande significado psicológico para crianças de todas as idades, tanto meninas quanto meninos, independente da idade e sexo do herói da estória. Obtém-se um significado pessoal rico das estórias de fadas porque elas facilitam mudanças na identificação, já que a criança lida com diferentes problemas, um de cada vez.

As primeiras princesas da Disney são sempre as mais lembradas. Talvez porque seus filmes já estejam sendo comentados e discutidos há mais tempo, talvez porque sigam um padrão clássico tão arraigado que logo vem à memória. Branca de Neve, Cinderela e Aurora (de A bela adormecida) se caracterizam como as princesas mais belas (a ponto de despertar a inveja das madrastas), amigas dos animaizinhos das florestas (sempre os companheiros da princesa solitária), que cantam com vozes doces e, principalmente, as mais passivas, esperando seus príncipes salvadores, com o beijo que a despertará ou devolverá o sapatinho perdido no baile.

Submetidas às normas e às leis sancionadas no interior destes discursos, as figuras das princesas, foram criadas pela Disney dentro de padrões determinados pela sociedade onde está inserida a corporação que as produziu. A vigência de suas imagens na cultura de massas ao longo de no mínimo quatro décadas, confere a estas figuras um importante papel subjetivador na vida de meninas de várias gerações.

Tudo bem você querer ser uma princesa; mas que ao menos você saiba de onde vem este desejo, o que o motiva e ampara.

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