quinta-feira, 18 de junho de 2015

ASHERAH: A esposa do deus de Israel.

Este post tem por objetivo realizar uma reconstrução da imagem da Deusa Asherah na Antiga Israel, como possibilidade de representação feminina no sagrado. Após a contextualização do processo de elaboração do monoteísmo em Israel, voltamos a um processo anterior, o politeísmo, onde vislumbramos a presença das Deusas e Deuses no contexto cananeu, em especial Asherah, para posteriormente identificarmos a relação conflituosa que se estabelece entre os escritos bíblicos e Asherah.

Para a maioria das pessoas que leem a Bíblia, a ideia de um único Deus de Israel, Yahweh, parece ser clara. No entanto, descobertas arqueológicas das últimas décadas vem demonstrando que nem sempre foi assim. Nem sempre Yahweh esteve solitário. Antes da ascensão do monoteísmo em Israel, o Deus Yahweh fazia parte de um contexto politeísta onde havia um panteão de deuses e deusas, sendo que provavelmente foi adorado ao lado de sua consorte, Asherah. 

Reconstruir a presença da Deusa Asherah na vida de mulheres e homens no antigo Israel é um esforço de, a partir de uma perspectiva feminista e de gênero, trazer elementos que nos ajudem numa maior aproximação do que foram os espaços religiosos e vitais deste povo. Esta reconstrução é algo necessário, uma vez que estamos diante de textos sagrados marcados pelo
sistema patriarcal, onde há o domínio do pai e quiriarcal, onde há o domínio do Senhor. Sistemas que projetaram historicamente um Deus masculino, legitimando práticas e funções masculinas, com isso silenciando mulheres, suas representações sagradas, tudo aquilo que pudesse lhes garantir espaço e voz.

Antes de qualquer reflexão em torno da Deusa Asherah, é necessário primeiramente fazermos uma breve alusão sobre o que foi a constituição do monoteísmo no Antigo Israel, para então entendermos como este monoteísmo afetou a cultura politeísta da época, mais especificamente o culto e a imagem da Deusa Asherah. Há uma grande problemática em torno do início do monoteísmo, são vários os apontamentos e as pesquisas. Algumas pesquisas apontam a época do profeta Elias como o momento histórico em que se começa a falar da exclusividade do Deus de Israel, principalmente no embate com o Deus Baal e no processo de sincretismo onde Yahweh incorpora as características de Baal. 

Os escritos bíblicos do Primeiro Testamento teriam em si a tendência de mostrar, do início ao fim, a realidade do monoteísmo, a proibição de se adorar outras divindades já é pressuposta em Gênesis e formulada claramente no Sinai. Outras pesquisas apontam sobretudo o século V a.C. como o momento histórico marcante, em que Yahweh vai se constituindo como Deus único de Israel, desencadeando um processo de diabolização de outras divindades. Num primeiro momento, a divindade Yahweh teria sido um elemento religioso que veio de fora do contexto cananeu. Nesta época, possivelmente era o Deus El que ocupava a cabeça do panteão divino. Yahweh passa a integrar o contexto israelita sem contudo negar a existência e diversidade de outras divindades. 

Neste sentido, a afirmação da exclusividade de Yahweh acarreta um processo de “diabolização” da própria Deusa Asherah, onde textos bíblicos serão instrumentos de justificação deste processo monoteísta. Frente a essa exclusividade de Yahweh, será impossível a sobrevivência de qualquer outra divindade, além de que a ênfase em Yahweh será critério de afirmação do sacerdócio masculino perpetuando uma sociedade patriarcal. Neste contexto, a existência de outras divindades masculinas e femininas foi sempre uma ameaça ao monoteísmo estabelecido, sendo que as reformas religiosas em Judá, de Josafá (870-848 a.E.C), de Ezequias (716-687 a.C), de Josias (640-609 a.C) e as legislações do Código da Aliança (Ex 20,22-23,19) e do Código Deuteronômico (Dt 12-26) agiram como instrumentos que visavam assegurar a fé monoteísta.

A primeira fase seria marcada pelo sincretismo entre El e Yahweh, no qual El é uma divindade cananéia cujas características é criador da terra e pai dos deuses. A segunda fase, por volta do século IX a.E.C, seria marcada pelos conflitos com o Deus Baal. Baal era filho de El, cuja característica principal era a fertilidade. A terceira fase estaria na ênfase da adoração exclusiva a Yahweh. O profeta Oséias, no século VIII a.E.C, equipara a idolatria à adoração de outras divindades. Neste período acontece a reforma de Ezequias (2Rs 18,4), que mostra a remoção dos lugares altos e a destruição da serpente de bronze, Neustã, reforma legitimada legalmente através do Código da Aliança (Ex 20,22-23,29). A quarta fase remete à época de dominação assíria, com a reforma de Josias (Rs 22-23), justificada legalmente pelo Código Deuteronômico,
englobando uma série de medidas visando a exclusividade de Yahweh e sua centralidade em Jerusalém.

Cada vez mais, as reformas religiosas vêm carregadas de intolerância religiosa proibindo qualquer tipo de imagens de divindades, mesmo que de Yahweh. Esta fase teria repercutido imensamente no culto à Deusa Asherah, consorte de Yahweh. A quinta fase seria marcada pelo monoteísmo absoluto e estaria
relacionada com o período do exílio. Esta realidade estaria clara em Is 45,5 “Eu sou Yahweh e fora de mim não existe outro Deus”. Gn 1 seria a afirmação do poder criacional de Yahweh diante do domínio babilônico ancorado na fidelidade à divindade Marduc. No entanto, o pós-exílio, época do domínio Persa e do retorno das elites sacerdotais exiladas na Babilônia, seria o momento de maior afirmação do monoteísmo absoluto em Yahweh, bem como, da supressão de qualquer referência a outras divindades, sobretudo femininas. Toda a literatura bíblica produzida e finalizada neste período terá essa tendência exclusivista em Yahweh.

A Deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de características dominadoras e guerreiras. Na Idade do Ferro I (1250/1150-1000), a forma corporal da Deusa-Árvore vai desaparecendo enquanto que formas de animais que amamentam filhotes, às vezes com a presença de uma árvore estilizada, ganham cada vez mais espaços na glíptica, significando a prosperidade e a fertilidade. A presença da Deusa fica relegada aos espaços de religiosidade das mulheres. 

Na Idade do Ferro IIA (1000-900 a.E.C), início da formação do javismo as Deusas passam a ser simbolizadas por seus atributos. A forma vegetal da Deusa confunde-se com seu símbolo, a árvore estilizada, sendo que muitas vezes é substituída por ele. Entendemos essas imagens como representações da Deusa Asherah.

Na Idade do Ferro IIB (925-720/700 a.E.C), Israel e Judá apresentam diferenças no âmbito simbólico. Os documentos epigráficos de Kuntillet Adjrud e de Khirbet el-Qom destacam um vínculo estreito entre Asherah e Yahweh, o que acima de tudo demonstra um contexto politeísta, onde se adoravam a várias divindades femininas e masculinas.

Na Idade do Ferro IIC (720/700-600 a.E.C), a Babilônia derruba a Assíria e passa a dominar Israel e Judá. Neste período encontramos o símbolo tradicional da Deusa, a árvore e o ramo. Vários selos ou impressões de selos que associam símbolos astrais com árvores estilizadas foram encontrados na Palestina e na Transjordânia, o que reforça interpretações sobre a existência de um culto a Deusa Asherah ao lado do Deus Yahweh. É principalmente na forma de árvore estilizada que, ao longo de séculos, Asherah esteve presente em Israel. Mas é sobretudo na época pós-exílica que as vertentes políticas e religiosas dominantes vão excluir e proibir a presença de uma divindade feminina dentro do javismo.

As primeiras evidências de Asherah aparecem em textos cuneiformes babilônicos (1830-1531 a.C) e nas cartas de El Armana (século XIV a.C), informações importantes sobre Asherah vêm dos textos ugaríticos de Ras Shamra (Costa Mediterrânea da Síria). Nestes textos, Asherah é chamada de Atirat, consorte de El, principal Deus do panteão cananeu no II milênio a.C, sendo mencionada também como ‘Elat, forma feminina de El.

Nos textos ugaríticos, Asherah (ou seja, Atirat ou ‘Elat) é a mãe dos Deuses, simbolizando a Deusa do amor, do sexo e da fertilidade. Também foram escavados vários pingentes ugaríticos que retratam uma Deusa, provavelmente Atirat/ Elat. A figura humana estilizada nestes pingentes contém o rosto, os seios e a região púbica e uma pequena árvore estilizada gravada acima do triângulo púbico. Em 1934, o arqueólogo britânico James L. Starkey encontrou o jarro de Lachish, datado aproximadamente no 13º século a.E.C, provavelmente ano 1220. O jarro é decorado e contém inscrições raras do antigo alfabeto semítico. Na decoração há o desenho de uma árvore flanqueada por duas cabras com longos chifres para trás, que, segundo Ruth Hestrin, representa Asherah. Uma
inscrição que segue pela borda do jarro tem sido reconstruída e traduzida por Frank M. Cross, como: “Mattan. Um oferecimento para minha senhora 'Elat”. Não se sabe quem é Mattan, mas está claro que ele faz uma oferenda para 'Elat, que é o feminino para El, chefe do panteão cananeu no II milênio a.C, equivalente ao pré-bíblico Asherah. Nota-se um dado importante, o nome 'Elat está escrito logo acima da árvore, representação de 'Elat/ Asherah. Há uma possibilidade deste jarro e seu conteúdo terem sido uma oferenda à Deusa.

No entanto, foi no templo de Arad, no Neguev, ao sul de Jerusalém, que se encontrou fortes evidências de Asherah. No santuário interno foram encontrados dois altares diante de um par de pedras verticais, possivelmente lugar de culto a Yahweh e Asherah. Um outro altar foi encontrado no pátio externo do templo com tigelas dos sacerdotes e cinzas de ossos de animais queimados, no canto uma irmandade local e altares com pedras duplas. O templo é datado aproximadamente da época do Bronze Recente, entre o 10º e 8º séculos a.C., quando possivelmente a reforma de Ezequias o extinguiu.

De politeísta, Israel passa a se constituir monoteísta, pelo menos na religião oficial. Provavelmente, adorações a Deuses e Deusas dentro das casas continuaram por longo tempo, como forma de resistência. A centralização no Deus único, Yahweh, que neste processo também se apropriou das funções de Asherah, custou caro aos outros Deuses e Deusas que compartilhavam da mesma cultura. Esta proibição atingiu a vida de homens e mulheres, que ali
encontravam uma significação religiosa.

Afirmar Asherah como Deusa é polêmico, mas necessário à religião e à pesquisa bíblica. Dar voz a uma época em que Deuses e Deusas eram adorados, em que o próprio Yahweh foi adorado ao lado de Asherah, nos impulsiona a repensar não só as relações pré-estabelecidas entre homens e mulheres, bem como, a própria representação do sagrado estabelecida. Imaginar o sagrado como Deusa é reimaginar as relações de poder, não numa tentativa de apagar a presença de Deus e sim de dar espaço ao feminino no sagrado, novamente o feminino não como um atributo do Deus masculino, mas como Deusa. Esta talvez seja uma grande contribuição da reflexão feminista, que nos desloca e nos provoca a repensar o sagrado, como possibilidade de reimaginar a sociedade e as estruturas cristalizadas secularmente.

Aqui eu discorri apenas uma pequena parcela das informações a respeito de Asherah e seu "ocultamento" histórico. Se alguém interessado for se aprofundar, vai encontrar muito, mas muito material a respeito.

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